Um dia de sonho

Cena 1
Dia 1- amanhecer

Pedro está deitado a dormir, subitamente o despertador começa a tocar. São 6: 45.

Pedro – (desligando o despertador) Merda! Não acredito! (espreguiça-se) Não me apetece nada ir trabalhar! (Vira-se para o lado e abraça a sua esposa, Helena) Helena! Acorda amor, já está na hora de acordares... (é muito carinhoso para ela, falando sensualmente)

Helena – Não me beijes agora! Sabes como detesto! Devo estar com um hálito horrível!

Pedro – Não faz mal! Gosto de ti na mesma! (beija-a lentamente)

Helena – Deves ter razão...

Pedro – Amo-te muito, sabes...

Helena – Eu acredito... porque eu também te amo muito... (beijando-o)

O telemóvel, dentro do bolso do casaco, de Pedro, começa a tocar. Ele levanta-se e corre para o atender.

Helena – Ainda não aprendeste a desligar o telemóvel?

Pedro – Bem sabes que não posso! (atende a chamada) Sim, já acordei... Um bom dia para si também... Não, ainda não saí de casa... Aconteceu um imprevisto? Como assim?... O senhor Gonçalves morreu?

Helena ouve atenta e fica espantada.

Pedro - Não pode ser verdade!... (olha triste para Helena) De um ataque cardíaco!... Estou perplexo! Nem sei o que dizer... O funeral vai ser amanhã.... Aguardo sim... Com certeza... Olhe, se tiver oportunidade dê os meus pêsames à Senhora Odete... Não lhe vou telefonar porque deve preferir o sossego, num momento como este... compreende por certo... Com licença.

Pedro desliga o telemóvel, senta-se na cama, com os pés no chão, pernas afastadas, eleva as mão à cabeça, com os cotovelos nos joelhos. Helena abraça-o por detrás.

Helena – Vá! Não fiques assim... Não gosto nada quando ficas assim!

Pedro - Desculpa-me... é mais forte do que eu...

Permanecem na mesma posição – ele sentado e de mãos na cabeça, ela abraçada a ele por detrás.

Helena – Bem sei que estes momentos são dolorosos... Deparamo-nos sempre com a dificuldade em encontrar as palavras certas... palavras que não magoem, que sejam bonitas... mas a morte é uma palavra tão feia... é mesmo feia! Já tinhas pensado nisso? Morte! M-o-r-t-e.

Helena levanta-se e dirige-se à sala, escolhe um CD: David Mourão Ferreira Um Momento de Palavras, e escolhe a faixa 18, o poema: “E Por Vezes”.

“E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tornarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos”


Pedro continua na mesma posição e, ao longo da recitação do poema, Helena regressa ao quarto aproximando-se novamente da cama. Note-se que as imagens aquando da declamação deverão ser todas em slow motion, para dar mais emotividade à cena. Helena contorna a cama e ajoelha-se diante do Pedro. Beija-lhe os pés, começa a subir pelas pernas com os lábios, beijando-as também, até aos joelhos. Olha para ele e diz-lhe:

Helena – Vais ser pai!

Pedro – O quê?

Helena – Foi o que tu ouviste! Vamos ter um filho!

Pedro – Um filho? Como? Não quero acreditar! Mas por que não disseste logo?

Helena – Para ser sincera... eu não ía dizer-te...

Pedro – Não ias dizer-me? Porquê? Eu não sou o pai?

Helena – É obvio que és tu o pai, quem querias que fosse?

Pedro – Então o porquê deste mistério?

Helena – Tu nunca irias entender-me...

Pedro – espera um minuto, não digas mais nada. Deixa-me pensar. Tu estás grávida de mim, mas não fazias intenções de dizer-me. E porquê? Porque não querias que esse filho nascesse, não era? Não era? Diz-me!

Helena – Sim, é verdade! Confesso! Não quero ser mãe tão jovem! Ainda não estou preparada para pensar em fraldas, ainda não estou preparada para abdicar de mim, do meu tempo, percebes?

Pedro – Eu não acredito! Ias fazer um aborto sem me dizer nada! Assassina! Desaparece daqui, não quero ver-te mais! Eu só não te bato porque jurei a mim mesmo que nunca iria agredir uma mulher!

Helena – Não Pedro, não! Eu pensei nisso, eu queria fazê-lo, mas não sou capaz... Não fui capaz... Por isso to disse...

Pedro – Não! Não foi bem assim! Tu apenas o fizeste porque o Sr. Gonçalves morreu! Confessa!

Helena – Não sei Pedro... Sinceramente... não sei...

Pedro despe-se e dirige-se à casa de banho, abre a torneira do duche e lava os dentes em frente ao espelho. Helena fica triste e pensativa. A claridade do dia começa a aparecer. Pedro sai do duche, e aparece no quarto de toalha à cintura.

Helena – Onde vais?

Pedro – Ainda não pensei nisso...

Helena – Não preferes conversar comigo?

Pedro – Conversar? Sendo frontal e directo, respondo-te que não. Queres que seja mais obvio?

Helena – Só estás a ver a situação pelo teu ponto de vista!

Pedro – Só estou a ver a situação no meu ponto de vista? Essa é muito boa! Bravo helena! Bravo! Desta vez conseguiste surpreender-me! És fantástica, sabias?

Pedro – Não te metas com ironias!

Pedro – Ah sim? Então acusas-me de só ver a situação no meu ponto de vista, enquanto que tu, sim tu, tu é que estavas a fazê-lo! Só pensas na tua carreira, e eu? O meu sonho de ter um filho? E se te acontecesse alguma coisa? Pensaste nisso? Hã? Pensaste? Não, não pensaste!

Helena – Estas a ser injusto! Muito injusto comigo! Tu conheces-me! Olha para mim, sou eu, a Helena, a mulher com quem tu casaste! Tu não imaginas o que tenho sofrido este último mês!

Pedro – O quê?

Helena – Sim, é verdade... Eu já sabia há cerca de um mês. Imagina a angústia que tenho passado. Por um lado queria dizer-te, por outro queria tirar esta criatura dentro de mim. Ter este filho é abdicar de um sonho meu... estou no início da minha carreira, está tudo a correr tão bem... Já fui capa nas melhores revistas... Tenho medo de engordar desalmadamente, de perder o meu corpo... A moda é o meu mundo... Tu sabias disso quando casaste comigo, e também sabias que eu tomava a pílula...

Pedro – O alibi perfeito...

Helena – Não enveredes por esse caminho! Peço-te!

Pedro – O que tu ias tentar fazer, não tem desculpa. Se aconteceu, é porque era suposto acontecer! Pensa em todas as modelos que já foram mães e que continuam perfeitas! A Cindy Crawford, aquela outra a ... Eva... a que foi casada com o Tico Torres dos Bon Jovi!

Helena – Estás enganado, ela ainda não foi mãe.

Pedro – Então e a Madonna? Já a viste? Teve dois filhos, e está melhor do que nunca!

Helena – Eu queria dizer-te. Acredita que sim. Mas não sabia como...

Pedro – Vem cá... tudo fica bem, quando acaba bem...

Helena – Tenho de telefonar para a agência, e avisar que não vou ao casting.

Pedro – Tem calma... Não há necessidade de ficares assim. Abraça-me e esquece... vamos esquecer tudo. O. k.?

Beijam-se.

Helena – Vamos para o Algarve!

Pedro – Para o Algarve?

Helena – Sim! Agora! Vamos para a praia apanhar um pouco de sol, mergulhar naquele mar imenso... Vamos amorzinho...

Helena levanta-se e vai até à janela, e abre totalmente a cortinas.

Helena – Vês? Vai estar um lindo dia!

Pedro sorri da cama.



Cena 2
Dia 1- manhã

Na travessia do Alentejo. Imagens das planícies. Helena faz o playback de uma música de Romana que passa na rádio :”Logo na Flor da Idade”.

Helena – “Por ele perdi tudo, na vida, alguns dos melhores anos, quem sabe, foi meia juventude, perdida, por me ter dado logo na flor da idade...”

Pedro – Fazes questão de cantar esta música?

Helena – Não, estou apenas a tentar rir de mim mesma.

Pedro encosta o carro.

Pedro – Helena, eu não quero que tenhas essa criança por mim!

Helena – Pára Pedro! Pára! Eu quero MUITO ter o nosso filho. MUITO! Acredita em mim.

Pedro – Então por que te meteste a cantar aquela música?

Helena – Estava a brincar!

Pedro – Eu não quero é ouvir, daqui a muitos anos, que deixaste de concretizar o TEU sonho para concretizares o MEU sonho!

Helena – Nunca Pedro! NUNCA! Em quem mundo vives tu? Eu amo-te! Já to disse quantas vezes? Terei de o repetir a todas as horas? A todos os instantes? O meu sonho Pedro... é ser feliz, e eu sou verdadeiramente feliz... porque estou ao teu lado. Porque preciso de ti para ser eu própria. Fazes-me ter vontade de ser um ser humano melhor. Ensinaste-me a separar o lixo, a ouvir música baixa para não incomodar os vizinhos, a dar esmolas a mendigos e a toxicodependentes, para não terem que roubar. Eu não sei! Eu não sei ser sem ti!

Pedro – Eu é que não sei ser sem ti....


Cena 3
Dia 1 - tarde

Pedro e Helena chegam ao parque de campismo de Albufeira. Montam a tenda. Estão a arrumar o interior.

Helena – Tem de ser sempre tudo à tua maneira! Nós já não temos idade para acampar! Eu sou uma figura pública! Fazes questão em humilhar-me?

Pedro – Não! Eu quero é que tu tenhas os pés bem assentes na terra! O facto de saíres nas revistas não faz de ti um ser superior aos outros!

Helena – Eu vou-me calar! É melhor!

Pedro – Vê se cais na realidade! O meu patrão morreu! Eu não faço a mínima ideia de como vai ficar a minha situação na empresa! Ele não tem filhos, e também não faço a mínima ideia de quem vai ficar a geri-la. Se calhar ainda me despedem!

Helena – Desculpa-me! Eu por vezes não sei onde tenho a cabeça. Eu compreendo que tudo isto deve estar a ser muito difícil para ti. Mas, vamos esquecer tudo, estamos no Algarve, e é para curtir à brava. Sabes que mais? Vou fazer um...

Helena faz um charro.

Pedro – Agora que estás grávida devias deixar-te dessas merdas.

Helena – Eu vou deixar os charros! Mas são o meu único vício, vai custar-me um pouco, mas pelo nosso filho... Faço tudo, só preciso é de uma despedida em grande...


Cena 4
Dia 1– tarde

Helena e Pedro estão na praia a apanhar banhos de sol.

Helena – Se for menina vai chamar-se Bárbara.

Pedro – Se for menino tem de chamar-se Manuel, o nome do Sr. Gonçalves.

Helena – Eu sei que tu vias nele um pai.

Pedro – O pai que nunca tive...

Helena – Já reparaste naquele bonzão ali deitado na toalha... Está sozinho... e já olhou para aqui imensas vezes...

Pedro – Eu não me vou meter com ele...

Helena – Vais sim... Como nos velhos tempos... Lembras-te?

Pedro – Eu não quero nada com homens!

Helena – Mas quando eu te conheci, andavas com um...

Pedro – Não gosto de falar disso... Faz parte do passado.

Helena – Ora Pedro, não quero que escondas nada de mim... Um corpo de um homem deixou de despertar-te desejo?

Pedro – Não penso nisso...

Helena – Não acredito...

Helena levanta-se e vai pedir um cigarro ao estranho, muito bem parecido, que está sozinho na toalha. Pedro observa e ri-se. Helena regressa com ele.

Helena – Quero apresentar-te o meu marido: Pedro. Pedro apresento-te o Gonçalo.

Pedro – É um prazer.

Gonçalo – O prazer é todo meu.

Olham-se com cumplicidade num sorriso. Helena sorri triunfante.

Helena – Gostavas de vir passar a noite connosco na nossa tenda?

Gonçalo – Na vossa tenda?

Pedro – Estamos no parque de campismo.

Gonçalo – Então devem ser meus vizinhos! Eu também acampei por lá.

Helena – Que feliz coincidência! Sabes Gonçalo, algo me diz que vamos ser muito íntimos.

Gonçalo – Tu não estás a ver quem eu sou, pois não?

Helena – Eu conheço-te?

Gonçalo – Fui teu colega na escola primária!

Helena – Não acredito! Tu és os Gonçalo? Espera aí! Tinhas óculos, não era?

Gonçalo – Pois tinha! Já naquela altura tu tinhas a mania de imitares as modelos nos corredores...

Helena – Pois era! Deveria ser tão cómica!

Gonçalo – Eras linda! E ainda estás... Se o teu marido me permitir dizê-lo.

Helena – Tu mudaste muito... Estás bastante atraente, não está Pedro?

Pedro – Não o conhecia antes!

Helena – Sabes o que é Gonçalo, eu vou-te explicar tudo. Eu estou grávida.

Gonçalo – Grávida? Parabéns aos dois!

Helena – Pois é, e o que se passa é muito simples. Estou a fazer uma despedida da minha vida de liberdade, e gostava de passar uma noite com dois homens...

Gonçalo – Estou a perceber...

Helena – E então?... Aceitas?

Gonçalo – Quem é que quer viver essa fantasia? Tu ou ele?

Pedro – Os dois!

Gonçalo – Muito bem. Se é assim... Não encontro razões para recusar!

Os três riem-se.



Cena 5
Dia 1 – noite

Os três estão deitados na tenda, um charro está a rodar. Helena está no meio.


Helena – Não sei quanto a vocês, mas eu era capaz de ficar assim para o resto da vida. É um sonho tornado real.

Pedro – Nunca iria resultar.

Gonçalo – Se uma relação a dois é complicada quanto mais a três!

Helena – Vocês são uns fracos!

Pedro – Como iríamos explicar ao nosso filho?

Helena – Com a verdade!

Gonçalo – Mas, vocês mal me conhecem! Sabem lá se iria resultar ou não!

Pedro – Eu por mim não me importava de tentar...

Helena – É assim mesmo rapazes! Vamos em frente, vamos escandalizar Portugal. Já me estou a ver num programa de televisão a relatar a nossa história.

Pedro – Helena, por favor!

Helena – Estava a brincar tonto! Dá-me um beijo!.... Agora tu Gonçalo!... Do que estão à espera? Beijem-se? Gosto de vos ver!

Gonçalo – Nós somos perversos! Estou a adorar!

Helena – Vamos inovar o conceito de casal!

Pedro – Nunca coloquei a hipótese de isto acontecer!

Helena – Vamos viver um sonho...



Cena 6
Dia 2 – tarde

Pedro, Helena e Gonçalo estão no funeral do Sr. Gonçalves. Estão cerca de 20 pessoas, todas muito bem vestidas. Entre ela Odete, a viuva. Esta aproxima-se dos três.

Odete – Pedro, eu gostava de falar a sós contigo, se não te importasses.

Pedro – Com certeza, senhora D. Odete.
Odete – Bem sei que este não é o local apropriado, mas a empresa não pode continuar sem um director. O meu marido e eu já havíamos conversado sobre isto, e é da vontade de ambos, que sejas tu.

Pedro – Nem sei o que dizer, não estava à espera.

Odete – O meu marido confiava muito em ti, e não só. Para ele sempre foste o filho que ele nunca teve. Ele gostava muito de ti.

Pedro abraça Odete emocionado.


Cena 7
Dia 1 - amanhecer

Gonçalo está deitado a dormir, subitamente o despertador começa a tocar. São 6: 45. Espreguiça-se, vira-se para o lado e diz:

Gonçalo – Acorda amor, já está na hora de acordares... (é muito carinhoso, falando quase sensualmente... )

Plano do rosto de Pedro.

Pedro – O quê?

Gonçalo – Acorda! Ainda vais chegar atrasado ao trabalho!


FIM

Guião para curta metragem escrito em 1999

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